27.11.12

apenas mais uma sobre aquele fenômeno

'Ela largou as botas sujas sobre a mesa da cozinha. Fumou-lhe o último cigarro do maço, quase que de sacanagem. Sentada na sua varanda, confidenciou. Algo precioso. Pediu desculpas pela bebedeira e se acabou de rir, em soluços. Você estava meio elétrico, nem reparou que passou um segundo ou dois apalpando suas próprias nádegas, tentando pôr as mãos em um bolso que não existia. Você gostava dela, talvez não houvesse amor algum, mas você gostava da maneira como ela o desafiava, era como se você tivesse que conquistar cada unidade de sentimento dentro dela, como se existissem unidades numéricas para medir o desvelo, a libido, os afetos em geral. Desconversou um pouco, pediu a ela que ficasse. Segurou-a pelos braços e beijou-lhe o canto do sorriso. Antes de se deitar em sua cama, ela tomou um banho demorado. Você a achou mais bonita de rosto lavado, sem todos aquelas cores indevidas, desordenadas. Cansado, você cochilou no sofá-cama da sala. Deviam ser quase cinco quando despertou e percebeu que ela dormia ao seu lado. Você tentou não se mexer, mas ela murmurou algo que você daria a própria carcaça para ter entendido. Comoveu-se. Pensou, por ora, que ela poderia ser tão sozinha no mundo quanto você.

Virou para o lado e dormiu, dormiu até tarde, faltou o trabalho naquele dia. Era uma segunda-feira. Famintos, passaram a tarde combinando restos da sua despensa. Vocês conversaram, compraram cigarros na padaria de baixo, debateram, reclamaram, partilharam de um mesmo humor. Parecia verão, e ela própria possuía dois sóis, um em cada olho, que pareciam acendê-la de dentro pra fora, alimentá-la. Você não havia percebido isso nos últimos anos. Quando ela ainda lhe era rude, inexpressiva, intangente, uma estranha, você olhava para o seu rosto quase se esquivando, pois parecia que era o mau humor dela que fazia chover e cair o mundo. Naquela época, vocês conversavam em desníveis, em frequências diferentes, impacientes, monólogas. Você nunca achou que iria um dia se pôr mendigando seu afeto, suas vontades, suas migalhas e possibilidades - os dedos dela em seu pescoço, decisivos, sufocando-o a outra direção.'