22.6.17

o ninho

Não é o rascunho do que viríamos a ser
É o contorno que fazemos com nossos corpos circunscritos
Côncavos alguns dias convexos mas
Sempre
Rentes e seguros

Não é a vontade de juntar escovas de dentes e planos é
O contorno que se faz do meu medo dentro do seu como se tivéssemos
Coexistido para nos ampararmos nesse
Mundo de imensidão e vazio

Não é a ideia de ter dois filhos botafoguenses é o
Contorno de ser entendido em um curto suspiro
Que entrega um dia que não vai muito bem

Não é o que pintamos de uma relação ideal é
O contorno que fazemos para aprender a pintar por dentro
Aprender a aprender
E eu me desafio
A me destituir das minhas arrogâncias

Não é o amor que estamos prestes a amar é o
Contorno que nunca deixamos de fazer

Lost in Translation



19.3.17

manual de como ser lida

Esse texto não é para ser lido como texto é
Para ser sentido por dentro dos tímpanos como
Um grito em uma almofada
Esse texto não dá pra ser nem texto ele é um
Começo de uma gestação problemática que pode nem
Dar luz que pode nem vir a ser matéria alguma
Esse texto não é meu e nunca seria
São olhares lançados ao mundo que reúno na
Audácia de explicar a vida e não é que eu
Acabo me sentindo mais viva
À medida que entro em um processo de derretimento
Para me tornar arte como faz-se dos vidros e da cerâmica

Esse texto nem queria ser texto era mais
Um produto de algo que não se diz
Por letras
Mas acabou se dizendo
Pois esse é o fim que todos temos enfim que é
Nos tornar um emaranhado de palavras

Mas cuidado que
Minha fala goteja em panela furada
Não é para ele que era e não é para eles e elas
Eu falo do mundo o que o mundo me fala
Mensagem sem destinatário

Pode me ler nas lacunas entre estrofes e me ler
Na métrica desobediente e pode ainda me
Encontrar no afeto ruidoso que transcorre minhas
Palavras mais usadas

O que a escrita tem de mais substancial no entanto
Simplesmente não se lê e é
A relação entre eu e as palavras que não são mais minhas
No instante em que as entrego

Exercício de devolução




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Obs.: Vem livro por aí! <3

metalinguagem

Falar de si e de nós quando ainda
Não somos nós
O contexto dessa relação
Quando ainda importam mais os filmes
Em cartaz
E o desfecho de uma reportagem
E como funciona um aparelho
Quando ainda não somos os protagonistas
Do afeto um do outro
Quando ainda é cedo para colocarmos
Vontades maiores do que simplesmente as coisas levianas
Que queremos e nossos programas para o sábado

Falar de si e de nós quando ainda
Não somos casal
Quando ainda não se tem registro de quem
Está bravo com quem ou
Do próximo presente de aniversário
Quando ainda importam mais as besteiras
Superficialidades e perguntas triviais
Que não respondem o desamparo
De camadas abaixo da questão em si

Falar sobre o espaço que se ocupa na vida um do outro e
Sequer ter os ouvidos afinados a esse tipo
Minucioso de linguagem
Falar em freqüências afetivas
Distintas
Quando ainda estamos nos amando
Secretamente
Por baixo das nossas falas

Falar da coisa em si que nos conecta e do ponto
Que liga todos os outros pontos
Falar do vazio compartilhado que carregamos e 
Das nossas urgências sobrenaturais por cafunés e
Pelo mais profundo entendimento
Falar de nós
Pra nos tornarmos nós
Em um espaço comum

Metalinguagem em que existimos

The living - Collin McAdoo

amores certos

Por mais que eu vá de encontro à intensidade como
Bichinhos de luz vão às suas lâmpadas
Por mais que o seu jeito de dançar tenha esse descompasso
Ritmado ao meu
E isso pareça significar algo
Por mais que tenhamos o impulso de viver amores com displicência
Como as pessoas comuns vivem suas viagens de fim de semana
Por mais que tenhamos um fraco pelo romance despreparado e
Fulminante
Por mais que percamos o gosto por nossos pares como se fossem chicletes
Em nossos dentes
Por mais que eu e você
E talvez mais eu do que você
Vendamos nosso afeto como um produto legítimo a leilão
Por mais que sejamos
Sagitarianos
Eu e você não passamos de amantes sem bom senso que
Só sabem dar um primeiro beijo desenhando roteiros
Que só sabem fantasiar vidas inteiras
Que se afogam em garoas
Que se doem nas lacunas temporais
Entre apaixonamentos

Eu e você só sabemos provocar e até
Atrapalhar
O trabalho do universo em nos trazer
Amores certos
E ele vai condenar nós dois à calma de um amor seguro
Vai trazer a monotonia de um amor verdadeiro
Vai trazer
Vai chegar
Apesar de


Marina Abramovic & Ulay

19.2.17

a elas, a nós

A minha dor é a cara da sua e se
A gente botar nossas dores pra dialogar
Vai sair uma tonelada de chumbo de dentro da gente
Eu vejo pelo canto caído dos olhos
Mal sorridos
Que a gente tem uma dor gêmea que dói de uma mesma
Nascente
A gente é mais irmã do que imagina porque a
Nossa dor combina
Da semente até o talo

A minha dor dói na sua 
Dói por dentro da sua
E se a gente colocar nossas dores pra cruzar sai uma
Constatação
Que a gente não deveria nem ter
Doído tanto

Nos fizeram opostas
Eles sabiam do estrago que dá
Quando as dores encontram seus pares

[so.ro.ri.da.de]

28.1.17

as mulheres que comem sapos

Ela disse naquela voz vagarosa de quem
Viveu caminho bem vivido
A cada uma de minhas pupilas disse
Minha querida, as mulheres que comem sapos estão
Nos mais longos dos casamentos e são
As mulheres que engolem mágoas que estão concretizando
Filhos adultos bem formados e
Viagens bacanas de família
Ela disse
Minha querida, faça mais por ele
Seja a voz do relacionamento e não espere
Pedidos de desculpas afagos e conclusões
Harmoniosas e seja
O silêncio do relacionamento também
Se ele assim desejar

Ela me pegou pelos ombros e disse minha
Querida você é a mais madura dos dois seja
A imagem imaculada que tudo perdoa e tudo recebe
Seja a evolução que ele não alcança
E minha querida insista em entender as dores
De tapas que doeram mais nele do que
No seu braço acredite querida
Ele não tem discernimento ele não
Tem nada
Sem a sua compreensão

Ela disse como quem diz a si mesma
Minha querida o pânico que você sente vai se aliviar
Você vai aprender a não
Sentir e vai se bastar de tanto
Amar

Minha querida cure-se de todo o seu querer
As mulheres que mastigam sapos estão nos mais
Fotogênicos dos namoros
Nos mais graciosos pares elas mastigam
Suas dores
Anfíbias
As mulheres que não mais sentem e não mais desejam
Sentir
Estão entre as mais amáveis das fêmeas
Minha querida não o
Confronte
Com todo o seu tônus e as suas audácias

E cessou com o suspiro
Com o cansaço de ter sido
Toda vida
Querida