'Ela largou as botas sujas
sobre a mesa da cozinha. Fumou-lhe o último cigarro do maço, quase que de
sacanagem. Sentada na sua varanda, confidenciou. Algo precioso. Pediu desculpas
pela bebedeira e se acabou de rir, em soluços. Você estava meio elétrico, nem
reparou que passou um segundo ou dois apalpando suas próprias nádegas, tentando
pôr as mãos em um bolso que não existia. Você gostava dela, talvez não houvesse
amor algum, mas você gostava da maneira como ela o desafiava, era como se você
tivesse que conquistar cada unidade de sentimento dentro dela, como se existissem
unidades numéricas para medir o desvelo, a libido, os afetos em geral.
Desconversou um pouco, pediu a ela que ficasse. Segurou-a pelos braços e beijou-lhe o canto do sorriso. Antes de se deitar em sua cama, ela tomou um banho
demorado. Você a achou mais bonita de rosto lavado, sem todos
aquelas cores indevidas, desordenadas. Cansado, você cochilou
no sofá-cama da sala. Deviam ser quase cinco quando despertou e percebeu que
ela dormia ao seu lado. Você tentou não se mexer, mas ela murmurou algo que
você daria a própria carcaça para ter entendido. Comoveu-se. Pensou, por ora,
que ela poderia ser tão sozinha no mundo quanto você.
Virou para o lado e dormiu, dormiu até tarde, faltou o trabalho
naquele dia. Era uma segunda-feira. Famintos, passaram a tarde combinando restos da sua despensa. Vocês conversaram, compraram cigarros na padaria de
baixo, debateram, reclamaram, partilharam de um mesmo humor. Parecia verão, e
ela própria possuía dois sóis, um em cada olho, que pareciam acendê-la de
dentro pra fora, alimentá-la. Você não havia percebido isso nos últimos anos. Quando ela ainda lhe era rude, inexpressiva, intangente, uma estranha, você olhava para o seu rosto
quase se esquivando, pois parecia que era o mau humor dela que fazia chover
e cair o mundo. Naquela época, vocês conversavam em desníveis, em frequências
diferentes, impacientes, monólogas. Você nunca achou que iria um dia se pôr
mendigando seu afeto, suas vontades, suas migalhas e possibilidades - os dedos dela em seu pescoço, decisivos,
sufocando-o a outra direção.'