22.3.12

faltante

High And Dry by Radiohead on Grooveshark

Ela dizia que podia ver a aura das pessoas quando semicerrava os olhos. Dizia que era uma prática de constatação física, e me deu uma explicação sobre energia e física quântica que me pareceu decorada de alguma revista ou edição do Fantástico. Ela dizia que chegou a mim porque focou bem em minha testa, “são anos de prática, não é pra qualquer um”; ela me focou a testa e soube que a minha energia era boa e bastante convidativa. Eu não sabia se ria ou concordava. A Júlia sempre foi de me roubar as palavras, e, em nossa linguagem peculiar, a Júlia só dizia – eu respondia com acenos e murmúrios. E aí ela dizia, os olhos apertados, franzidos, fuzilando-me o alto da cabeça:

- Sua aura tem um buraco. É faltante.

As tequilas chegavam de duas em duas. Duas pra Júlia. Uma Coca pra mim. Eu não bebia, que se eu bebesse, dizia, e isso meio que mexia no equilíbrio das coisas. Então ela dizia por mim. E dizia em mim, debruçando-se cambaleante sobre meu peito em uma intimidade que nunca foi minha, mas dos caras, das dezenas de caras que eu a vi beijar nos últimos anos, admirando-os com olhos etílicos e lentos de quem foca energia em testa ou sei lá qual era a lorota da vez nesses tempos. Seja qual fosse, funcionava. Os caras eram muitos. E eu nunca era os caras.

Nossa conversa caminhava em tropeços. Quando não falava sobre as bobagens da física quântica, falava sobre as bobagens da medicina. A Júlia gostava de folhear essas revistas científicas caras pra ter sempre algo a ser transmitido. Decorava e não comprava, sentindo-se malandra – roubava conhecimento. Daí ela balançava a cabeça de um jeito bastante pateta e sorria: “eu que te ensinei essa”. Eu gostava disso. Era das poucas coisas que a Júlia fazia das quais eu não conseguia sentir raiva.

O primeiro beijo com a Júlia foi tortuoso. Ela me empurrava com a força de seu corpo, como quem diz “desabo em você pois sei que você me segura”; uma mão que deixei, já desistente, sobre o balcão molhado de cerveja, e a outra segurando a cabeça pesada de Júlia contra a minha. Entre nós, um grito em meu peito. Afetos e desalentos dos anos que se passaram. O sorriso com que ela me assassinava todas as segundas na faculdade. O perfume de seus pulsos gesticulantes, nunca tão próximo às minhas narinas como nesse momento. E a música - mas que droga de música favorita, logo agora?, era essa, do Radiohead, que, pior: ela sabia que eu adorava. Um sorriso no meio do beijo, senti os cílios subirem pelas minhas bochechas:

- Pago pra ver você esquecer isso que está acontecendo.

Era a mesma Júlia de anos atrás. Embriagada e carente. Consciente de todo o efeito devastador que causava em mim. Mesma Júlia, só que mais perto.

A paixão, química e biologicamente falando, leva cerca de dois anos para se extinguir. Ela que me ensinou essa. Eu digo que levou um curso de graduação inteiro e bota mais tempo nisso. Pro inferno com os "dois anos".

A Júlia não sabe de nada.